Eclipse


A história de Bota e o disco que ele levou para o túmulo

por Vinícius Gandolphi 




- Eu simplesmente queimaria todos meus discos.

- Tem certeza? É a primeira vez que você tá ouvindo isso aí, bicho. - A voz anasalada era parte um problema de dicção e parte maconha, mas Flávio não se preocupava com isso. Pra ele, não houve melhor época pra viver do que aquela, quando “tudo acontecia”.

- Sério. Eu jogaria fora tudo o que eu tenho em casa, todos os meus 13 anos de coleção de LP’s. De Jovem Guarda a Novos Baianos, de Chuck Berry a Grateful Dead. Eu nunca ouvi nada igual ao que eu ouvi agora. As músicas conversam, cara!

- Bom, vamos com calma. A gente só ouviu um lado! Vira o disco, Bota.

Bota era o apelido de Roberto Brotas, e ele era chamado assim porque morava no campo (num brejo, na verdade) e, segundo uma das tantas brincadeiras do chapado Flávio, parecia que aquele estranho sapato já fazia parte do seu corpo. A “galera da cidade” não ligava. Bota era uma figura diferente no meio de tantas figuras diferentes no que eram as universidades no começo dos 70. O lado bom de ser um louco nesse tempo era o benefício da dúvida e 100% de segurança no sexo livre.

Bota virou o disco escuro como o lado escuro da lua, posicionou a agulha com precisão cirúrgica na borda do bolachão e esperou o som surgir antes de reacender a baga.

- Vai devagar com essa merda, Bota – gritou o amigo – eu sei que lá de onde cê veio é só mato, mas esse é diferente. Segura a onda pra não cortar o barato, Chico Bento.

Você nem precisava conhecer o Bota pra saber como ele ficava puto quando o chamavam de Chico Bento.

- Que merda é essa? Desde quando isso é música? – tagarelava Flávio – Esse barulhinho de caixa registradora de armazém velho tá me dando raiva. Tira esse troço daí, porra!

- Sossega, Flávio! Quando você vem com suas merdas de Bee Gees a gente é obrigado a aturar e você não aguenta um minutinho disso? Quando tu tá chapado é mais chato que o fim dos Beatles.

Continuaram conversando. Flávio não era de aguentar muito desaforo, mas depois de quase comer um pé de verdinha e de seus olhos parecerem duas amoras inchadas ele era capaz de deixar o Dalai Lama com pressa. A conversa continuou girando em círculos, assim como o disco que, diferente dos dois chapados, foi parar na lista em algum lugar. Está sempre na lista dos mais importantes da música dessa ou daquela revista e não saiu da memória de Bota, que largou os estudos pra viver numa colônia de músicos sem saber nem bater palma. Morreu recentemente, deixando mulher, quatro filhos, uma quantia mais que considerável em dinheiro e 52 anos de LP’s, dos quais muitos quase foram pro fogo depois de uma tarde de quarta-feira regada a cannabis e rock progressivo.

De todos, falta um na estante. 


E você sabe qual é.

Esse ele levou pro túmulo.




0 comentários:

Postar um comentário